De longe era apenas um vulto imperceptível, mas de perto distinguia-se a silhueta de três pequenas pedras deixadas de propósito sobre uma marca de quilometragem. Continham um papel velho e amarelado. Entre manchas de barro e humidade, uma débil caligrafia juvenil escrita com tinta azul dizia: “Enrico, buenos dias. Escutar, observar e abrir o coração aos sons. Assinado: Jean”.
Nunca saberemos se Enrico não viu a mensagem de seu amigo Jean ou se talvez, depois de lê-la, preferiu seguir o Caminho até Santiago e deixá-la ali, à intempérie, naquele marco perto de Frómista, com a confiança de que algum outro peregrino lesse e também essa sensível definição que seu amigo Jean havia feito sobre o Caminho de Santigo: Escutar. Observar. Abrir o coração para os sons.
Com essas palavras acabava de descrever a abismal diferença que separa a rota jacobeia a Compostela de qualquer outra marcha em qualquer caminho do globo. A hospitalidade, o desapego ao supérfluo, a comunhão do corpo com a natureza depois de vários dias de marcha, a tradição depositada por milhares e milhares de viajantes nos últimos 11 séculos em cada pedra, cada árvore, cada cruzamento da rota jacobeia fazem deste caminho a oeste, ao finis terrae, uma experiência única no mundo, que lembra a rota das estrelas, o reflexo sobre a Terra deste outro caminho celeste, a Via Láctea, que já foi utilizada pelos peregrinos na Idade Média para orientar seus passos até a tumba do apóstolo.
A peregrinação a Santiago é uma viagem de quase 800km ao interior de si mesmo, que cada pessoa realiza com a sua própria bagagem e objetivos. Há aqueles que a iniciam pelo prazer de caminhar; outros, por convicção religiosa, ou por interesse artístico e histórico a respeito de um trajeto pelo qual entraram na Península Ibérica as vanguardas estéticas e culturais do Ocidente; também é frequênte fazê-lo por uma promessa, ou por um pouquinho de todos esses motivos ao mesmo tempo. Mas o que quase ninguém que inicia o Caminho sabe é que esse momento desencadeia um processo de renovação interior que para esta pessoa haverá de mudar o conceito de muitas coisas.
Tem algum sentido uma peregrinação por uma rota medieval, na alvorada do século XXI? É evidente que o traçado histórico desapareceu em grande parte sob o asfalto das estradas ou pela expansão das lavouras. Onde antes havia bosques, lobos e bandidos, agora há zonas industriais e veículos a motor. E os peregrinos, que antes pediam esmolas, agora carregam no bolso um cartão de crédito. Mas a essência da via milenar permanece com a mesma intensidade, suspensa em cada bocado de névoa dos bosques navarros, em cada dobra das colinas riojanas, em cada horizonte interminável das planícies castellanoleonesas ou em cada sombra húmida das corredoiras galegas.
É certo que o Caminho está em mutação a passos agigantados. Uma nova era de ouro, depois de quase quatro séculos de decadência, é uma força que deve trazer renovação. Florecem novos negócios, como cogumelos no outono: placas de “Leva-se mochilas até o próximo albergue por 2€” ou outros que anunciam restaurantes, hotéis, padarias ou albergues privados, que ficam viradas para a trilha dos pedestres e não mais para a estrada, como acontecia antes, explicitando por onde é que agora chegam os clientes.
Talvez isso não seja um mal em si; talvez, como dizia um hospitaleiro brasileiro que passou cinco anos atendendo caminhantes, não seja mais do que a própria dinâmica do Caminho, que já foi e cresceu como via comercial na Idade Média, mas é certo que antes do ano Jacobeio de 1993 era difícil encontrar um telefone público, e agora há cybercafés nas aldeias mais remotas da Galícia.
Sem dúvida, quase 1200 anos depois que o primeiro peregrino chegou a Santiago, ainda sobram detalhes suficientes – os albergues que só pedem uma esmola, um hospitaleiro que desperta seus hóspedes com cantos gregorianos e os convida ao café-da-manhã, as bolhas nos pés, um momento compartilhados com gente desconhecida mas muito próxima – para fazer desta viagem interior uma experiência inigualável. Porque muito poucos são os que conseguem não se emocionar ao finalizar a pequena aventura de percorrer um pedaço da História sem nenhum motor que não suas próprias pernas e sem mais objetivos além daqueles que Jean enumerou a seu amigo Enrico: Escutar, observar e abrir o coração aos sons.
 
Nota: Este texto está nas páginas 8 e 9 do livro “El Camino de Santiago a Pie”, editado por El País/Aguilar.
Achei tão bonito que decidi colocar aqui. Estas palavras inspiraram-me e deram-me a certeza de que tomei uma óptima decisão ao escolher percorrer o Caminho de Santiago.